Como mencionei no artigo anterior, um dos temas que considero palpitantes na história do flamenco é a sua intersecção com o romantismo.
Tal fato não é novidade, porque sendo o flamenco um fenômeno social e cultural, é natural que seja influenciado e influencie o seu entorno.
O ano de 2017 está chegando ao fim e nessa época muitas escolas e grupos de dança se preparam para fazer uma apresentação, assim como o grupo que participo, Perla Flamenca, dirigido por Miri Galeano “Perlita” e Jony Gonçalves. Estou muito feliz e ansiosa para celebrar o começo de um novo ciclo com o espetáculo que apresentaremos “De Sur a Sur”. Refletindo nos ensaios, não paro de achar paralelismos entre lá e aqui.

Pensando nesse paralelismo do “sur” de lá com o sul daqui, podemos dizer de forma superficial que enquanto tivemos o índio como personagem central do romantismo, lá o gitano (cigano) foi um dos destaques e isso está intimamente ligado com a consolidação do flamenco.
Para além da questão da contribuição das diversas culturas que formaram o flamenco, entre elas a presença dos ciganos, o personagem gitano, ideário e mítico, teve influência fundamental na solidificação do flamenco, ou será que justamente pelo flamenco estar se firmando nesta fase do romantismo espanhol foi que o personagem gitano foi exaltado? A resposta não é o mais importante, pelo menos não neste pequeno texto, e sim refletir sobre a influência e contextualizar o momento de consolidação do flamenco como arte autônoma.
A origem do flamenco remonta ao século XVIII e sua consolidação ao século XIX, o que não significa que antes do século XVIII não houvesse algo de flamenco, nem que após o século XIX ele não siga sendo construído e (re)inventado. De acordo com as últimas pesquisas, a primeira vez que se utilizou a palavra flamenco foi em 1847, antes, acreditavam que teria aparecido pela primeira vez em 1871.
“O flamenco, concretamente, é um complexo cultural composto por uma multiplicidade de elementos, a maioria dos quais, vistos isoladamente, deveriam ser definidos como tradicionais, e que, no entanto, constitui um fenômeno cultural moderno: consolidado no final do século XVIII e durante o século XIX”.
Isidoro Moreno Navarro, catedrático em Antropologia Social e Cultural da Universidade de Sevilla.
O flamencólogo Alfredo Arrebola lembra que o artista flamenco também se identifica com o poeta romântico porque está disposto a expressar seus sentimentos, intimidades e inquietações, algo totalmente contrário ao homem neoclássico do século anterior.

Assim, podemos observar que o contexto social e cultural em que o flamenco começa a se consolidar foi o romantismo e com ele a peculiar admiração por personagens livres, com valores exóticos, de caráter orgulhoso e forte, o conhecido “buen salvaje”. Enquanto no Brasil tivemos o personagem índio, na Espanha e parte da Europa o grande personagem do romantismo foi o gitano, assim como também tiveram destaque o toureiro, o bandoleiro, entre outros.
Parafraseando Jose Luis Ortiz Nuevo, na sua origem, o flamenco nada mais era que gritos de dor, de raiva, lamentos profundos para romper os silêncios, mas também eram as celebrações, as festas, a arte que conquistava toda Europa e América com seu exotismo e seu grande personagem romântico: o gitano.
Os gitanos aparecem como personagem central e sujeitos ativos, participando tanto de festas próprias, privadas, como em festas organizadas por pessoas de classe superior e em grandes teatros e óperas, ultrapassando até mesmo o âmbito do flamenco. Como exemplos da presença do elemento gitano tanto no teatro popular como erudito não só espanhol, podemos citar ‘El trovador’ (1836), de Antonio García Gutiérrez; a lírica italiana ‘Il Trovatore’ (1853), de Giuseppe Verdi; ‘La Traviata’ (1853), também de Giuseppe Verdi; ‘Carmen’ (1875), de Georges Bizet; ‘El barón gitano’ (1885), de Johan Strauss.
No entanto, esse “agitanamento social” parece ter tido maior profusão e extensão nas pautas de comportamento e na estética do sul da Espanha, onde a tendência cultural e social ganhou o adjetivo de Majismo. Podemos descrever o Majismo, de forma bastante simplificada, como um movimento social que mostra a reação de classes não aristocráticas contra o afrancesamento na moda e nas relações sociais.

Na região de Madri, o movimento ganhou o adjetivo de Goyesco, pois Goya pintou muitos Majas e Majos. Ali a moda estava mais ligada à nobreza, que mesclou a forma de vestir típica das pessoas humildes com os tecidos e adornos mais luxuosos. Goya pintou a Duquesa de Alba em 1797 com mantilha e traje típico do “majismo”.
O estudioso Steingress defende que o agitanamento da cultura andaluza foi o resultado de uma busca por uma identidade coletiva, que de simples moda, passou a formar parte integral da identidade de grandes setores sociais. Sua aceitação, principalmente ao meio burguês, se deve a representação de um mundo aparentemente divertido, gracioso, ainda que cheio de momentos trágicos. Segundo o sociólogo, isso gerou também um reforço mútuo de preconceitos sociais e estereótipos, como reflexo da caótica situação social e cultural que vivia o país.
Dessas reflexões, é possível extrair algumas conclusões, entre elas que o flamenco é um fenômeno urbano, moderno e começou a conquistar autonomia no bojo do romantismo, é como se o romantismo fosse o terreno fértil propício para a consolidação desta arte. Também é possível encontrar mais uma das chaves para a universalidade do gênero flamenco no fato de que, do século 18 (ou até antes) aos dias atuais, do sul da Espanha ao sul do Brasil, além do tempo e do espaço, o flamenco sempre está intrinsecamente ligado aos sentimentos humanos, às penas e glórias sociais e culturais e se inter-relaciona diretamente com o contexto social, cultural, econômico e político, não só local, mas mundial, a exemplo do contexto do romantismo.
No próximo artigo, vamos refletir um pouco sobre a relação entre o flamenco e a política. Hasta pronto, Majos y Majas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- NAVARRO, Isidoro Moreno. El flamenco en la cultura andaluza. In: ROLDAN, Cristina Cruces (org). El Flamenco: Identidades Sociales, Ritual y Patrimonio Cultural. Centro Andaluz de Flamenco: Sevilla, 1996, p. 21.
- NUEVO, Jose Luis Ortiz. Pensamiento politico en el cante flamenco. Biblioteca de la Cultura Andaluza, 1985. P. 18
- Steingress, Gerhard y Baltanás, Enrique. (Junio de 1995 y 1997): Flamenco y nacionalismo: aportaciones para una sociología política del flamenco: actas del I y II Seminario Teórico sobre arte, mentalidad e identidad colectiva. Fundación Machado, Sevilla., p. 34